Rikki-tikki-tavi
- 1ª parte
(Rudyard Kipling / tradução Monteiro
Lobato)
Vou contar a história da grande guerra que
Rikki-tikki-tavi sustentou sozinha, na sala de banho dum grande bangalô do
acantonamento de Segowlee. É verdade que Darzee, o passarinho-alfaiate, a
ajudou, e Chuchundra, o rato mosqueado que nunca ousa caminhar pelo meio da
casa e sempre passa deslizando ao longo das paredes, lhe deu um aviso. Isso,
porém, foi pouco diante do muito que Rikki-tikki fez.
Era uma jovem mangusta, que pela cauda e pêlo se
assemelhava a um gatinho, embora pela forma da cabeça e hábitos lembrasse a
doninha. Tinha os olhos cor-de-rosa, e também a ponta do focinho; podia
coçar-se com todas as patas, as de diante e as de trás, à vontade; podia também
eriçar a cauda ao jeito dos chumaços de lavar garrafa, e seu grito de guerra,
quando estava em casa nos campos, era Rikk-tikk-tikki-tikkitchek!
Certo dia as águas dum temporal de verão a
arrastaram da toca onde vivia com os pais, e a levaram, a debater-se aflitíssima,
para dentro dum valo que havia perto. Rikki agarrou-se a um tufo de ervas
flutuantes e perdeu os sentidos. Quando voltou a si, estava numa rua de jardim
iluminada pelo sol, com um menino na frente, que dizia:
- E uma mangusta morta. Vamos enterrá-la.
- Não, disse a mamãe. Vamos pô-la a secar, porque
pode não estar bem, bem, bem morta.
E a recolheu dentro de casa, onde um homem a
examinou e declarou que realmente não estava morta, mas apenas asfixiada;
envolveram-na então em flanelas e a puseram perto do fogo... e Rikki-tikki logo
abriu os olhos e espirrou.
- Bravos! - exclamou o homem (era um inglês que
havia alugado o bangalô muito recentemente). - Agora é não a assustarem e
veremos o que a pobrezinha faz.
A coisa mais difícil do mundo consiste justamente
em assustar a mangusta, porque é um animalzinho da cabeça aos pés feito de
curiosidade. Parece que a divisa da raça é: "Procura e descobre", e
Rikki-tikki não desmentia as qualidades do seu povo. Provou logo a flanela que
a envolvia e verificou não servir para comer; correu depois em redor da mesa,
sentou-se, foi empoleirar-se sobre o ombro do menino.
- Não tenha medo, Teddy, disse-lhe o pai. Esse é o
modo de as mangustas mostrarem amizade.
- Ui! Ela está-me fazendo cócegas no pescoço...
Rikki-tikki enfiou os olhos por entre a gola e o
pescoço do menino, farejou-lhe as orelhas e depois veio dum salto ao chão, onde
se sentou, esfregando o focinho.
- Meu Deus! - exclamou a mãe de Teddy. - Então é a
isto que chamam animal selvagem? Será que compreende que somos bons para ela e
mostra-se grata?
- Todas as mangustas são assim, disse o marido. Se
Teddy não lhe puxar a cauda, nem procurar metê-la em gaiola, viverá em paz aqui
dentro, correndo por toda a casa o dia inteiro. Vamos dar-lhe alguma coisa de
comer.
Veio um pedaço de carne crua, que Rikki-tikki achou
excelente. Depois que a comeu foi para a varanda e sentou-se ao sol, eriçando a
cauda para fazê-la secar completamente. Estava já quase sarada.
- Há mais coisas a descobrir nesta casa do que a
minha gente lá no mato verá em toda a sua vida, pensou consigo a mangustinha.
Vou ficar por aqui.
E começou a correr o bangalô, peça por peça. No
banheiro por um tico não morreu afogada. No escritório sujou a ponta do nariz
no tinteiro e a queimou na brasa do charuto, ao saltar para o colo do pai de
Teddy a fim de vê-lo manejar a pena. Ao cair da noite correu ao quarto do
menino para ver a criada acender o lampião, e quando Teddy foi para a cama
Rikkitikki fez o mesmo. Mas era má companheira, visto como se levantava cem
vezes durante a noite para descobrir a causa de todos os barulhinhos. Os pais
de Teddy tinham vindo dar no filho a última vista d'olhos e lá encontraram a
mangusta, muito esperta, deitada no travesseiro.
- Não gosto disto, declarou a mamãe. Ela é capaz de
mordê-lo.
- Não morde, não, disse o pai. Teddy está mais
seguro na companhia deste animalzinho do que se estivesse uma ama a guardá-lo.
Se uma cobra entrasse no quarto agora...
No dia seguinte, muito cedo, Rikki-tikki veio à
varanda para a refeição, repimpada no ombro de Teddy; recebeu uma banana e um
pouco de ovo cozido, deixando-se tomar ao colo por todos os presentes. A
mangusta bem educada procura tornar-se logo doméstica, e a mãe de Rikki, que já
morara na casa do general comandante da região, lhe havia ensinado o que fazer,
caso caísse nas mãos dos homens brancos.
Depois do almoço Rikki foi passear e observar o que
havia pelo jardim. Era um grande jardim, mas um tanto largado, com tufos de
roseiras Marechal Niel espessos qual moitas, e limoeiros e laranjeiras e
touceiras de bambu enormes. Rikki-tikki lambeu os beiços de gosto.
- Que esplendido campo de caça! - disse, e a esse
pensamento sua cauda se eriçou. Imediatamente se pôs a correr dum lado e
doutro, farejando tudo. Súbito, ouviu lamentações doloridas que vinham de
dentro duma moita de espinheiros.
Era Darzee, o passarinho-alfaiate e sua
companheira. Moravam ali, tendo construído um belo ninho por meio da junção de
duas folhas largas que coseram com fibras nos bordos; a concavidade assim formada
fora enchida de paina. O ninho balouçava-se no ar, enquanto os donos, com os
olhos no chão, piavam um choro triste.
- Que é que têm vocês? - perguntou Rikki-tikki.
- Somos muito infelizes, respondeu Darzee. Um dos
nossos filhotes caiu do ninho, e Nag o devorou.
- Hum ! exclamou Rikki-tikki. O caso é realmente
triste. Mas sou nova por aqui e não sei quem é Nag.
Darzee e a companheira, em vez de responderem,
recolheram-se precipitadamente para dentro do ninho. É que do espesso do
ervaçal viera um silvo surdo, um horrível som arrepiante... que fez Rikki-tikki
dar um pulo para trás. E então, polegada a polegada, ergueu-se da erva a cabeça
com o capelo ereto de Nag, a grande cobra negra de mais de dois metros de
comprimento. Depois que se levantou de um terço acima do solo, ficou a
bambolear-se da esquerda para a direita, exatamente como se balança um pé de
taraxaco - e a cobra olhava para Rikki-tikki com esses olhos duros das
serpentes, os quais nunca mudam de expressão, seja o que for que elas pensem.
- Quer saber quem é Nag? Sou eu, disse a cobra. O
grande deus Brama pôs sua marca sobre todo o nosso povo, quando a primeira
cobra estirou o seu capelo para o preservar do sol enquanto dormia... Olha para
mim e treme, mangusta !
A cobra retesou o mais que pode o seu capelo, e
Rikki-tikki pode ver sobre seu corpo as marcas em forma de argolas.
Por um minuto a mangusta sentiu medo; mas é
impossível tal animalzinho sentir medo por muito tempo e, embora Rikki-tikki
jamais houvesse encontrado uma cobra, sua mãe a nutrira de carne de cobras e
lhe ensinara que o destino das mangustas é fazer guerra às cobras e devorá-las.
Nag também sabia disso e lá no fundo do coração estava receosa.
- Muito bem, disse Rikki-tikki - e sua cauda
eriçou-se de novo. Com marcas de Brama ou não, acha que tem o direi to de comer
os filhotes de passarinho que caem do poleiro?
Nag vigilava os menores movimentos do ervaçal que
se estendia por trás da mangusta. Sabia muito bem o significado de mangusta no
jardim - simplesmente morte para si e sua família, mais cedo ou mais tarde. Era
preciso, pois, apanhá-la de surpresa. Pensando assim, Nag moleou o corpo e
disse:
- Conversemos ... Você come ovos. Por que não
havemos nós de comer o que sai dos ovos? Responda.
- Olhe para trás, olhe para trás ! cantou
disfarçadamente Darzee.
Rikki-tikki compreendeu instantaneamente o aviso,
sem necessidade de voltar a cabeça para ver do que se tratava. E saltou para o
ar, o mais alto que pode, ouvindo o ruído dum bote que falha. Era Nagaína, a
companheira de Nag. Tinha vindo por detrás, sorrateiramente, enquanto Nag
distraía a mangusta, a fim de dar cabo do inimigo por surpresa. Rikki-tikki,
ainda no ar, ouviu o silvo de raiva da cobra lograda; depois veio ao chão e
quase que caiu de costas. Se fosse mangusta de mais idade saberia que era
aquele o momento de quebrar a espinha do inimigo com uma boa mordedura, mas
apavorou-se com a terrível chicotada que recebeu e limitou-se a uma mordidela
única, pulando de lado. Nagaína ficou a rabear, furiosa e malferida.
- Malvado ! Malvado Darzee! exclamou Nag.
E deu o salto mais impetuoso que pode na direção do ninho; Darzee,
porém, o construíra de modo a pô-lo fora do alcance de qualquer serpente - e o
ninho continuou lá em cima, a balouçar-se, inatingido.
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